Em grupão no Facebook, indústria do cigarro empurra lobby do vape para fumicultores

Agroinfluencer parceiro da Philip Morris tenta engajar agricultores contra potenciais novas restrições ao cigarro eletrônico pela Anvisa
Em grupão no Facebook, indústria do cigarro empurra lobby do vape para fumicultores
Arte por Heloisa Botelho/Núcleo Jornalismo
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Reportagem desenvolvida com o apoio da bolsa "Tabaco: a indústria de mil faces e o jornalismo sistêmico", do site O Joio e o Trigo em parceria com a Aliança de Controle do Tabagismo (ACT).
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Este texto foi corrigido

Um grupão privado de produtores de tabaco no Facebook virou alvo da influência da indústria do cigarro, a qual tenta convencer agricultores a pressionar pela liberação de cigarros eletrônicos (os chamados vapes). A meta é engajá-los contra novas restrições ao produto debatidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Com 130 mil participantes, montante suficiente para reunir um membro de cada uma das 125 mil famílias agricultoras de fumo no país, o grupo privado "Produtor de Tabaco RS, SC e PR" é administrado pelo agroinfluencer Giovane Weber, que também compartilha conteúdos de sua página Fumicultores do Brasil no espaço.

Nas redes sociais, Weber faz vídeos patrocinados pela Profigen (empresa de insumos agrícolas da fumageira norte-americana Philip Morris), publis na fábrica da Japan Tobacco International (JTI) e participa de iniciativas e publicações do Sinditabaco (o sindicato patronal que representa as indústrias tabagistas).


É importante porque...

A indústria do tabaco usa agroinfluencer e grupo com 130 mil produtores rurais para reforçar pressão contra proposta da Anvisa que amplia restrições ao cigarro eletrônico

Páginas de fumicultura no Facebook patrocinadas pela indústria tentam engajar produtores rurais contra a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, ratificada pelo Brasil junto à OMS em 2005

O cigarro eletrônico é a aposta da indústria para garantir novas gerações de fumantes, retomar a atratividade do vício em nicotina e reverter avanços no controle do tabagismo


Em 1.fev, Weber publicou em sua página e no grupo um vídeo para orientar fumicultores a se manifestarem contra uma proposta da Anvisa que amplia proibições contra o vape. Desde dezembro, a agência colhe contribuições para a nova norma em uma consulta pública que vai até sexta-feira (9.fev).

No vídeo, o influenciador pediu a agricultores que preencham o formulário da consulta com a opinião de que "a não regulamentação incentiva o contrabando" e que a nova norma "impedirá a geração de renda para os produtores de tabaco e empregos na cidade, além de não gerar arrecadação de impostos".

Os próprios seguidores da página de Weber, no entanto, estranharam o vídeo, que acumula mais de 40 mil visualizações. De 20 comentários publicados até 6.fev, nove criticavam a publicação – o restante incluía respostas de outros perfis em defesa do posicionamento.

Entre fumicultores, há o receio de que a nicotina líquida usada no cigarro eletrônico reduza a demanda pelo fumo em folha.

Pesquisadores apontam que exagerar a importância econômica da indústria e usar o contrabando como justificativa para frear novos impostos ou restrições ao setor são dois dos principais discursos usados por fumageiras.

Já mobilizar agricultores de países "do terceiro mundo" contra iniciativas antitabagistas é uma das táticas da indústria desde os anos 90, segundo relatórios internos da Philip Morris.

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Influenciador publicou vídeo orientando fumicultores a se manifestarem contra proposta da Anvisa usando "opinião pronta". Reprodução: Fumicultores do Brasil/Facebook

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Segundo a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), na safra 2022/23 havia 124,9 mil agricultores de fumo no país – 95% deles concentrados na região sul. O grupo Produtores de Tabaco RS, SC e PR reúne 130,8 mil membros. Já a página Fumicultores do Brasil tem 436 mil seguidores no Facebook. Em sua maioria, o tabaco é produzido em pequenas propriedades rurais pela agricultura familiar.

Live com a Abifumo

Dias antes da publicação do tutorial, em 29.jan, Weber havia feito uma live com o cientista político Giuseppe Lobo, gerente-executivo da Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo), entidade responsável pelo lobby do tabaco em Brasília. Na ocasião, Lobo convidou fumicultores a se manifestarem em defesa do cigarro eletrônico junto à agência e Weber prometeu fazer um vídeo sobre isso.

O Núcleo perguntou à Abifumo se a transmissão ao vivo foi patrocinada, mas a associação não respondeu às nossas dúvidas.

Vídeo que orienta fumicultores a se posicionarem contra restrições do Anvisa foi combinado durante live de Weber com o gerente-executivo da Abifumo. Crédito: Reprodução/Facebook.

Procurada pela reportagem sobre eventuais interferências da indústria do tabaco na consulta pública sobre vapes, a Anvisa disse apenas que até 5.fev havia recebido 7,6 mil contribuições sobre o assunto e que só depois do fim da consulta, em 9.fev, é que as sugestões serão analisadas.

O que disse a Anvisa ao Núcleo

Até 05/02/2024 foram enviadas 7.677 contribuições à Consulta Pública 1222/2023. A Consulta Pública n° 1222/2023 encontra-se em análise na Agência e está aberta até o dia 09 de fevereiro de 2024. Após a conclusão da consulta, as sugestões serão consolidadas para o seguimento do processo.

TUTORIAL DA INDÚSTRIA. O passo a passo dado por Weber aos agricultores segue um formato semelhante ao da campanha digital da Philip Morris Brasil (PMB), a Quero Escolher, que usou anúncios no X disfarçando o patrocínio da fumageira para incentivar usuários a votarem contra a proposta da Anvisa por mais restrições ao vape.

Com dezenas de patentes de componentes ou fórmulas de nicotina para vapes registradas no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), a PMB é a principal interessada na liberação do cigarro eletrônico no país.

Nas lavouras, o vape sequer é pauta. "Não escuto ninguém a nível de produtor comentando sobre isso", avalia o engenheiro agrônomo Germano Pollnow, pesquisador do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab), da Fiocruz. "Há jovens que usam em festas, acontece na cidade também, mas não tenho leitura disso entre os produtores."

Ao Núcleo, a fumageira norte-americana negou ter contratado o agroinfluencer para suas ações digitais, mas admitiu manter uma relação comercial com Weber na produção de tabaco. Ele é um dos fumicultores integrados da PMB, regime no qual agricultores fornecem fumo em quantias pré-determinadas pelas empresas.

Publis da Philip Morris no X foram desmascaradas por checagens de usuários
Anúncios não deixavam claro que a fumageira norte-americana estava patrocinando campanha que tenta interferir em consulta da Anvisa

Leia a íntegra da resposta da Philip Morris

"A relação de Giovane Weber com a Philip Morris Brasil é exclusivamente relacionada à produção de tabaco, no sistema integrado."

CORTINA DE FUMAÇA. A afirmação de Weber de que manter a proibição do vape favorece o contrabando vai contra o que afirmou o Ministério da Justiça à Anvisa durante a formulação da nova norma.

"Não há nenhuma razão para crermos que, uma vez regulamentado o produto (vape) no Brasil, haverá diminuição do contrabando", disse a pasta, segundo o diretor-executivo da Anvisa, Antonio Barra Torres. "Pelo contrário, assim como ocorre com outros produtos já proibidos no Brasil, podemos antever uma tendência de aumento drástico no contrabando caso haja opção pela regulamentação".

Procurado pela reportagem para discutir os interesses da indústria em suas publicações, Weber indicou o contato de seu produtor e sócio em uma empresa de marketing digital, Alan Toigo. Após receber as perguntas do Núcleo sobre publis para a indústria do fumo, Toigo descartou responder o que chamou de "perguntas pessoais".

O que perguntamos ao sócio do agroinfluencer Giovane Weber

"Primeiro, vi que você é sócio do Giovane em uma empresa de marketing! Posso chamá-lo de sócio dele então? Como faço? Só para eu indicar no meu texto qual a sua relação com ele na hora de te referenciar pelas respostas.

Em seguida, minhas dúvidas:

  1. A live recente com a Abifumo foi patrocinada? A indústria apoiou financeiramente de algum modo a produção desse conteúdo ou do vídeo em que vocês indicaram como produtores rurais devem votar na consulta da Anvisa sobre vapes?
  2. Houve alguma orientação da Abifumo, Afubra ou de alguém quanto a redação da recomendação de que produtores deveriam opinar que "a não regulamentação incentiva o contrabando" e "impedirá a geração de renda" na consulta pública da Anvisa em um desses vídeos? Ou se trata exclusivamente da opinião da página?
  3. O patrocínio da página Fumicultores do Brasil/Por Dentro da Safra pela Philip Morris Brasil (sobretudo via Profigen) ou pela JTI envolve a produção de conteúdos ligados à regulamentação dos cigarros eletrônicos ou à defesa da cadeia produtiva na COP-10? Qual a relação entre a PMB, JTI e as páginas do Giovane?
  4. Sei que Giovane viajou a Brasília ano passado durante a Conferência Nacional de Municípios e participou de várias atividades promovidas pela Amprotabaco. Naquela oportunidade, a viagem do influenciador foi custeada por quem? Houve produção de conteúdo patrocinado sobre o evento?
  5. As entrevistas e lives com o deputado estadual Marcus Vinicius também são patrocinadas? Qual a relação entre o influenciador e o deputado? Por que a preferência da página pela veiculação de conteúdos deste político em específico?

O que respondeu o sócio do agroinfluencer

"Olá Pedro, tudo bem?

Achei que as perguntas seriam relacionadas a cadeia produtiva do tabaco, e não sobre a nossa vida pessoal. Se vocês quiserem falar sobre questões de saúde, impostos, exportação, geração de empregos ou contrabando, estamos à disposição.
Um abraço!

Att.
Alan Toigo"

Bancada do agro

O grupo e a página de fumicultores também têm sido usados para espalhar conteúdos produzidos por políticos estaduais da bancada do agro que desinformam agricultores sobre a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), um tratado internacional de saúde pública ratificado pelo Brasil em 2005 e coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

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O que é a CQCT?
A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) é o primeiro tratado internacional de saúde pública, desenvolvido entre 1999 e 2003 com coordenação da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, o acordo entrou em vigor em fevereiro de 2005 com a meta de reduzir o tabagismo no país. Em 1989, por exemplo, mais de um 1/3 dos adultos brasileiros era fumante. Em 2019, esse índice havia caído para 12% da população adulta.

A cada dois anos, a OMS promove conferências (COPs) para países discutirem avanços no combate ao tabagismo e, neste ano, em 2024, está sendo realizada a COP-10, no Panamá, entre os dias 5.fev e 10.fev.

Ao longo do evento, a página de Weber têm republicado vídeos de deputados estaduais e federais da bancadas do agro que foram ao evento para defender a indústria do cigarro, mas acabaram barrados por não pertencerem a entidades ligadas à saúde pública.

"Não estamos estimulando ninguém a fumar nem contrariando informações científicas que mostram que fumar faz mal, mas o que não podemos aceitar é que meia-dúzia de pessoas se reúnam nesse espaço de luxo no Panamá, trancados no ar condicionado, e imponham restrições a lavouras de todo o país", disse um deputado estadual gaúcho em um dos vídeos compartilhados. "Estamos aqui lutando pelo direito ao contraditório e defesa desse setor", afirmou.

Publicações da página sugerem que a conferência da OMS ataca os produtores rurais. Crédito: Reprodução/Facebook.

INFILTRADOS. Como o regramento da CQCT bane a participação da indústria nesses eventos, as fumageiras tentam usar "testas de ferro" para participar dos debates. No caso brasileiro, onde o agronegócio é mais forte, a indústria usa representantes ligados à fumicultura.

Um relatório da Philip Morris de 1997 indicou que a empresa deveria apostar em "ONGs de produtores rurais do terceiro mundo" para influenciar os debates da CQCT a seu favor, enquanto documentos relevados pela Reuters em 2017 indicam que a fumageira pressiona pela participação de delegações de políticos vinculados à agricultura, ao comércio e ao finanças para cercear debates pautados na saúde.

CADE O ENGAJAMENTO? Weber tem publicado vídeos que sugerem que o evento debate a restrição da produção rural de tabaco e não está recebendo a atenção de fumicultores.

"Não gera a repercussão como deveria porque estamos no oba-oba do momento de venda de tabaco", disse o agroinfluencer em um vídeo de 7.fev. "A COP-10 é algo que nos preocupa porque define os rumos nos próximos dois anos no setor".

A pauta do evento neste ano, no entanto, não discute o fim da produção rural de tabaco, e sim prevê o fomento de alternativas para agricultores devido à queda na demanda por cigarros. Ela inclui debates sobre vapes, regras para mais transparência nos ingredientes de produtos de tabaco e a publicidade do fumo, agendas que interessam à indústria.

Em uma série de publicações, página reclama que políticos e jornalistas pró-tabaco foram barrados de participarem da COP-10, que em seu regramento proíbe a interferência da indústria nos debates. Crédito: Reprodução/Facebook.

Como fizemos isso

Para a realização da reportagem, acompanhamos entre dez.2023 e fev.2024 as publicações do agroinfluencer Giovane Weber na página Fumicultores do Brasil e no grupo Produtor de Tabaco RS, SC e PR, ambos no Facebook.

Também revisamos documentos internos da indústria do tabaco que foram disponibilizados ao público e entrevistamos pesquisadores ligados ao Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab/Fiocruz).


⚠️ Texto atualizado às 12h25 de 23.fev.2024 para corrigir uma troca no nome da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, que foi erroneamente chamada de "Convenção-Quadro para o Controle do Tabagismo" em um dos trechos do texto.

Texto Pedro Nakamura
Arte Heloisa Botelho
Edição Sérgio Spagnuolo

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