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Empresas de inteligência artificial começam a abordar o jornalismo

O grande destaque para o jornalismo precisa ser outro, mais focado em qualidade do que em substituição de mão-de-obra.
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Linha Fina é uma coluna de opinião sobre mídia e jornalismo

A explosão de ferramentas generativas de inteligência artificial no fim de 2022 trouxe, ao mesmo tempo, animação e alerta para profissionais do jornalismo. É uma faca de dois gumes que pode tanto ajudar – com automatizações e ideias – quanto prejudicar – com informações inventadas e queda de qualidade – nosso trabalho.

Seja como for, empresas desenvolvedoras dessas tecnologias já estão se aproximando de organizações jornalísticas, a fim de aterrar as fundações de um futuro no qual inteligência artificial e jornalismo trabalham juntos.

O Google, que tem uma longa história de aproximação com veículos jornalísticos no mundo todo, tem abordado grandes jornais nos EUA a fim de emplacar uma ferramenta de IA chamada "Genesis", que se alimenta com informações de eventos atuais para redigir conteúdo. [Disclaimer: o Núcleo já recebeu dois grants do Google. A empresa não possui participação nem tem qualquer interferência no Núcleo. Mais detalhes neste link.]

Já a OpenAI, criadora do ChatGPT e que tem acordo bilionário com a Microsoft, já começou a fechar parcerias com veículos nos EUA, mais notoriamente a Associated Press, mas também destinando US$5 milhões para iniciativas de jornalismo local.

Ainda não há indicativos de que algo similar esteja sendo feito no Brasil. Se for, certamente será oferecido para grandes empresas jornalísticas e associações de jornalismo antes de veículos independentes entrarem em cena. É parte do jogo.

A aproximação entre inteligência artificial já era esperada desde antes dessas novas ferramentas se popularizarem. O temor de que a máquina vai substituir o humano é algo que ronda o imaginário do trabalhador desde a Revolução Industrial. Viu-se desde então empregos antigos serem extintos e novas profissões serem criadas.

A grande questão para o jornalismo sobre inteligência artificial precisa se concentrar em qualidade, e não substituição de mão-de-obra.

Se é verdade que essas ferramentas podem ser muito úteis a jornalistas, também é verdade podem ser verdadeiros canhões de entulhos digitais. Não é preciso nenhum grande trabalho acadêmico para notarmos que cursos online e posts no LinkedIn estão sendo avacalhados com conteúdo genérico criado pelo ChatGPT.

Uma ferramenta digital brasileira de produção de conteúdo, a Pingback (que antes queria ser tipo um Substack e agora tá mais para plataforma de marketing), está ativamente vendendo uma solução IA para produção em massa de conteúdo automatizado.

A partir de uma interface amigável, é possível dar um comando para criar um texto inteiro e disparar para sua base de assinantes – nada diferente do ChatGPT, só mais caro, mas diretamente incorporada numa ferramenta de newsletter.

Sempre houve spam e sempre houve conteúdo lixo na internet. Mas a incorporação desse tipo de tecnologia na produção de conteúdo por organizações jornalísticas de reputação vai estimular o aumento do volume e potencialmente derrubar a qualidade.

Como apontou o jornalista Casey Newton, na newsletter Platformer:

Fazendas de conteúdo não são nada novas, claro; muito antes do ChatGPT, havia eHow e Outbrain e Taboola. O que é diferente agora, no entanto, é que publicações de maior reputação estão inclinadas a participar do jogo.

Por melhores e mais convincentes que sejam os novos modelos de linguagem (LLMs) que alimentam essas ferramentas, ainda não são remotamente capazes de criatividade nem discernimento humanos. No fim, tratam-se apenas de ferramentas de predição de sequência de palavras.

Segundo uma pesquisa conjunta das universidades de Stanford e Berkeley, na Califórnia (EUA), o desempenho do ChatGPT deu uma piorada ao longo dos meses. Há algumas especulações para essa percepção de queda na qualidade, mas Peter Welinder, vice-presidente de produtos da OpenIA, disse apenas que à medida que as pessoas usam mais o ChatGPT, elas começam a notar coisas que não viram antes.

Seja como for, é necessário evitar que organizações jornalísticas virem empilhadeiras de conteúdo lixo gerado por inteligência artificial (sim, há veículos que geram sua quantidade de porcarias em troca de centavos em publicidade digital, mas pelo menos isso emprega alguns jornalistas).

É claro que o Google quer emplacar sua ferramenta de IA nas redações. Dessa forma, elas poderão publicar mais URLs para que seus Google Ads apareçam na frente de globos oculares de pessoas que querem se informar ou passar o tempo lendo alguma coisa em seus telefones.

A fórmula é velha: mais conteúdo = mais receita de anúncios (inclusive para as publicações). Se sem essas ferramentas o Google faturou US$244 bilhões com anúncios em 2022 (+80% de sua receita), que dirá com mais conteúdo distribuído por aí a rodo?

Não se trata de vilanizar inteligência artificial. Essas ferramentas possuem potenciais imensos para o jornalismo que precisam ser explorados, seja na classificação de dados, na automação de processos repetitivos, no esclarecimento de questões técnicas ou até na geração de resumos e ideias. O que não dá é pra deixar a produção de jornalismo inteira no colo de IAs.

O site de tecnologia CNET teve a brilhante ideia de automatizar a publicação de posts com IA, sem revisão humana, e depois descobriu erros factuais em mais da metade das URLs publicadas.

Vai ser difícil resistir ao dinheiro e aos recursos que as Big Tech vão jogar em veículos jornalísticos para emplacar suas ferramentas. O que é possível fazer é resistir à tentação gerar conteúdo fácil em troca de volume de audiência, deixando a qualidade desse conteúdo em segundo plano. O jornalismo sofrerá caso isso aconteça.

Texto Sérgio Spagnuolo
Edição Alexandre Orrico

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