Seu artista preferido de Jazz no Spotify provavelmente não existe

Entenda a controvérsia sobre "artistas falsos" na plataforma – e qual o tamanho desse problema todo
Seu artista preferido de Jazz no Spotify provavelmente não existe
Arte: Rodolfo Almeida
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Raio-x é uma editoria de análise crítica do Núcleo e contém opiniões

Se você quer relaxar enquanto escuta no Spotify um jazzinho instrumental ou um violão suavemente dedilhado, existe uma boa chance de que você esteja ouvindo artistas que não existem — ou até mesmo músicas geradas por inteligência artificial.

Ao buscar por playlists de gêneros como Jazz ou Violão Instrumental, diversas playlists editoriais (aquelas criadas pelo próprio Spotify) estão no topo dos resultados – muitas delas, com foco em relaxamento. É o caso de "Jazz for Sleep", "Jazz Tranquilo" ou "Jazz in the Background" (essa última com cerca de 1,45 milhão de likes e mais de 800 faixas).

Batendo o olho nos nomes, parecem ser majoritariamente artistas novos ou pouco conhecidos no gênero: Shay Walsh, Urban Jazz Junction, Holborns, e por aí vai – quase todos não trazem nenhuma informação biográfica no Spotify e uma busca rápida no Google não retorna nenhum resultado sobre quem são.

Conhece algum desses artistas? A gente também não

Ao escutar as faixas é inegável a similaridade entre elas. Timbres, volume, arranjos, estrutura da música, qualidade de gravação: tudo dá a impressão de que todas elas vieram da mesma sessão de gravação, com os mesmos músicos.

O que acontece na verdade, é que esses artistas não existem.

O problema do Spotify com "artistas fantasmas" não é novo. Existem reportagens de ao menos seis anos atrás chamando atenção para o fenômeno. A plataforma nega e sempre diz não fazer nada do tipo.

“Nós não criamos e nunca criamos artistas 'falsos' e os colocamos em playlists do Spotify. Categoricamente falso, ponto final. Não possuímos nenhum direito sobre músicas, não somos uma gravadora. Toda a nossa música é licenciada pelos detentores de direitos e pagamos royalties por todas as faixas no Spotify.”

Spotify à revista Billboard americana

Mas a coisa é um pouco mais complicada que isso.

Quem fez a música então?

Tratam-se, na maioria, de pseudônimos criados por produtoras de áudio que licenciam faixas para a plataforma – ou, em alguns casos mais raros, de pessoas que usam inteligência artificial para gerar músicas de gêneros específicos, com pouca ou nenhuma influência humana.

Curiosamente, muitas dessas produtoras de áudio – como Chillmi Music, Q&L Publishing e Firefly Entertainment (com lucros reportados de cerca de 7 milhões de dólares por ano) – são suecas e sediadas em Estocolmo, assim como o próprio Spotify.

Em 2022, uma investigação do jornal sueco DN publicou uma lista de 830 artistas suecos falsos identificados na plataforma. Desses, pelo menos 500 eram pseudônimos usados por cerca de 20 compositores suecos, a maioria deles residentes de Estocolmo.

Outra investigação do tipo foi feita em 2017 pelo site especializado Music Business Worldwide, que identificou dois produtores suecos, Andreas Romdhane e Josef Svedlund, da produtora Audiowell, como os compositores de centenas de faixas do tipo.

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Quem tá tocando? Sei lá, tanto faz.
O Núcleo selecionou os primeiros resultados de uma busca por playlists editoriais do gênero "Jazz". Essas são algumas que trazem artistas de quem não há nenhum vestígio online.

Jazzy Morning
Jazz in The Background
Jazz for Sleep
Jazz Tranquilo
Jazz for Study
Jazz in the Rain
Jazz for Reading

Essas produtoras não costumam atuar só com o Spotify: criam também faixas para serviços como a Epidemic Sound, uma biblioteca de faixas genéricas usadas em comerciais, trilhas sonoras para TV e videogame, etc.

E tem algum problema?

Sim e não. Não parece haver nada de ilegal na prática de inventar artistas: se um produtor ou compositor deseja divulgar suas músicas sob um (ou vários) pseudônimos, essa é sua prerrogativa, e a música segue ainda sendo feita por uma pessoa real que está sendo paga pra isso.

Mas, por se tratarem de algumas das maiores playlists do gênero na plataforma, existe pelo menos um problema ético.

Artistas independentes que dedicam centenas de horas de prática e estudo ao seu ofício vêm reclamando de concorrência injusta, já que tem pouca ou nenhuma chance de serem incluídos em algumas das maiores playlists do gênero porque o Spotify prefere enchê-las de faixas licenciadas sob pseudônimos – seja porque elas se encaixam melhor com aquela playlist ou por conta de acordos de licenciamento.

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Divide o bolo comigo!
Ser incluído em uma das playlists editoriais do Spotify representa uma das principais oportunidades para ganhar notoriedade hoje como artista. Mas, para um músico independente, essa conquista se torna praticamente impossível, uma vez que a plataforma teria que estar disposta a compartilhar parte da remuneração com artistas fora dos seus acordos de licenciamento.

É justamente nesse ponto que a questão fica um pouco mais complicada. O Spotify já admitiu no passado fazer acordos de licenciamento de faixas com essas produtoras para trazer para sua plataforma um grande volume de músicas parecidas que se encaixem com as playlists que quer empurrar para os usuários.

O que não se sabe, porém, é quais são os termos desses acordos de licenciamento – e, caso eles sejam feitos sob preços mais baratos do que aqueles praticados normalmente entre o Spotify e artistas reais, aí sim pode haver um problema devido ao modelo de remuneração da plataforma.

Como funciona a remuneração de artistas no Spotify?

É uma conta complexa, mas, à grosso modo: todos os artistas no Spotify dividem uma mesma quantidade de grana, distribuída conforme a quantidade de reproduções de uma música. Com isso, um artista independente brasileiro está dividindo o mesmo bolo com outros músicos imensos, como The Weeknd ou Ed Sheeran.

Em novembro de 2023, ainda por cima, a empresa anunciou alterações no formato de remuneração, aumentando o sarrafo da quantidade mínima de reproduções necessária para que um artista receba pagamento pela audição de suas músicas.

Já que o Spotify pagou pelo licenciamento dessas faixas e as incluiu em suas playlists de grande visibilidade, a remuneração das centenas de milhares de audições dessas músicas pode, em tese, estar retornando para o próprio Spotify. Mas, por ora, isso tudo é especulação até que sejam conhecidos os termos dos acordos de licenciamento.

Essa ideia, porém, já foi corroborada por um ex-funcionário o Spotify que afirmou à revista Variety que essa é uma das muitas estratégias internas do Spotify para auxiliar nas negociações com gravadoras, reduzindo assim a quantidade paga em royalties — já que as faixas podem ser licenciadas por um custo abaixo do que é normalmente pago para artistas reais.

Arte: Rodolfo Almeida

O problema da curadoria

Se não existe necessariamente um problema legal, existe uma questão de fundo nisso tudo que é a mudança do perfil do Spotify enquanto uma das maiores e mais importantes empresas da indústria musical – e o que essa mudança diz sobre nossos hábitos de escutar música.

Para uma empresa que já investiu muita grana e esforços para se posicionar como um serviço de curadoria e descoberta de boas músicas, toda essa controvérsia não pega bem em termos de imagem. Mais do que isso, ela parece uma extensão do processo de automatizar a criação de suas playlists, que se iniciou ali por volta de 2015. Dali em diante, o serviço passou a se apoiar muito mais em recomendações via algoritmo do que em curadoria humana.

A compra do Echo Nest

Quase dez anos atrás, o Spotify comprou a plataforma de inteligência de dados musicais The Echo Nest, que coleta e disponibiliza centenas de pontos de dados sobre as faixas. Com essas informações, a empresa se tornou capaz de saber com algum grau de precisão quais são os tipos de músicas que funcionam para esses climas específicos – e desenhou cuidadosamente playlists ao redor desse conhecimento.

Boa parte das playlists editoriais de maior sucesso no Spotify giram em torno de vibes: playlists para relaxar, estudar, cozinhar, quase sempre feitas por produtoras profissionais sob centenas de pseudônimos. Isso não é à toa. No mercado de música centrado em plataformas, o ouvinte médio da plataforma parece não se importar com o que está tocando, contanto que a música forneça a ambiência desejada.

Ou seja, o Spotify parece ter se cansado de esperar que artistas reais componham músicas que se encaixem naquilo que suas análises de dados indicam que tem melhores resultados e passou ele mesmo a encomendar e licenciar faixas de produtores musicais que criam exatamente aquilo que se encaixa com a vibe que quer vender.

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Quem tá ouvindo música pra dormir aí?
Existem também outros gêneros com playlists potencialmente cheias de artistas falsos que o Núcleo encontrou, dá uma conferida se você escuta alguma delas:

Sono profundo
lofi sleep
Songs for Sleeping
Baby Sleep
Instrumental Study
Instrumental Ukelele
Calming Instrumental Covers
Calming Acoustic
Relaxing Guitar Covers
Cozy Acoustic Morning

Esse movimento reforça o que alguns especialistas tem chamado de "comoditização da música": a redução da importância do papel do artista em favor da música como uma commodity como qualquer outra. Fãs de música mais dedicados já vêm reclamando disso como um problema de transparência, já que a plataforma não informa quando suas playlists são compostas inteiramente de pseudônimos – e a sensação de descobir que você escuta alguém que não existe não é exatamente boa.

Só isso?

A questão com as produtoras não é de longe a única controvérsia sobre fraudes em plataformas de streaming de música. O Spotify está cheio de atividade fraudulenta, e isso já foi mapeado inclusive por autoridades governamentais europeias.

O Centre National de la Musique (CNM), órgão francês vinculado à indústria musical nacional, estimou que pelo menos 3% de todos os streamings realizados por usuários franceses no Spotify em 2021 foram de artistas falsos. A Associação Alemã da Indústria Musical também fez um estudo semelhante.

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Se a proporção de reproduções de artistas falsos identificada pelo estudo da CNM fosse extrapolada para toda a operação do Spotify, seriam cerca de 525 milhões de dólares globalmente que poderiam estar voltando para o próprio Spotify, em vez de distribuídos para artistas reais. Isso se os acordos de licenciamento forem com preços mais baixos.

Mas também existem outros problemas. Isso inclui artistas que inventam colaborações com grandes artistas consolidados para manipular o algoritmo de recomendação do Spotify, há registros de gravações de música clássica com tom alterado e atribuídas a artistas falsos, e até faixas completamente idênticas sendo distribuídas sob dezenas de títulos e nomes de artistas diferentes.

O buraco é ainda mais fundo.

Texto, arte e vídeo Rodolfo Almeida
Colaboração Sofia Schurig
Edição Alexandre Orrico e Sérgio Spagnuolo

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