No Instagram, médicos extrapolam boa conduta da profissão em busca de vitrine

Apesar de normalizada, a proliferação de perfis de médicos e nutricionistas no Instagram é problemática tanto para esses profissionais, que se sentem obrigados pelo mercado a estarem na rede, quanto para pacientes, que podem acabar expostos
No Instagram, médicos extrapolam boa conduta da profissão em busca de vitrine
Arte: Rodolfo Almeida
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Os exemplos vão desde post com textão sobre dieta até lives sobre alimentação contra o câncer ou problemas de peles. As redes sociais viraram uma espécie de catálogo médico, no qual usuários podem encontrar todo tipo de profissional da área da saúde por meio dessas vitrines virtuais, com destaque para procedimentos estéticos.

Nessa área, uma rede se destaca mais do que as outras: o Instagram.

Perfis de médicos e nutricionistas influenciadores, na ordem dos milhares de seguidores, se valem tanto da plataforma que a @nome de usuário do profissional já pode inclusive ser incluído no próprio carimbo de receituário, segundo consulta do Núcleo com uma empresa de São Paulo responsável pela fabricação de carimbos médicos.

Essa realidade pode parecer inofensiva, mas é comum haver excessos que extrapolam as boas práticas da medicina.

A necessidade de autopromoção e engajamento pode expor pacientes indevidamente, gerar exageros no conteúdo publicado e até mesmo colocar em saia justa os profissionais que optam por não usar as redes, ou os que as usam com parcimônia.

A influenciadora Bettina Rudolph, por exemplo, chegou a dizer sem muita parcimônia que optou por uma dermatologista pelo fato de a profissional médica se promover mais no Instagram, como se fosse sinônimo de conhecimento.


É importante porque...

A normalização de perfis médicos nas redes acaba se tornando uma espécie de ditadura para profissionais da saúde que se veem obrigados a manter um perfil profissional ativo nas redes.

Influenciadores da área da saúde, principalmente os que trabalham com emagrecimento e estética facial, podem acabar passando da linha e indo contra normas do Conselho Federal de Medicina e o de Nutrição em relação ao uso das redes sociais e exposição dos pacientes.


Marketing especializado

Por trás dessa proliferação de médicos e nutricionistas Instagramers estão empresas especializadas nesse tipo de marketing, que surgiram conforme a demanda foi crescendo.

Em funcionamento desde 2015, a Agência do Médico cuida desde a gestão de redes sociais, posicionamento do consultório no Google e até a criação da marca do médico – que vai aparecer, por exemplo, no receituário ou no perfil no Instagram.

O fundador da Agência do Médico, Diogo Rodrigues, observa que houve um aumento de 250% na procura pelos serviços  entre 2020 e 2022.

"Quando eu atendo médicos um pouco mais velhos e que não usam o marketing digital, dizem muito ‘estou ficando para trás, está vindo um monte de médico que não tem o mesmo conhecimento que eu, não tem a mesma experiência que eu tenho, mas estão ganhando pacientes porque eu não apareço, não sou conhecido, porque eu não tenho site, não me acham’", conta Rodrigues.

Então, essa mecânica muda muito: antes os médicos ganhavam o paciente pelo boca a boca. Hoje não, hoje é pelo marketing digital

A empresa, segundo o fundador, segue à risca as normas do Conselho Federal de Medicina sobre o uso profissional das redes sociais pelos médicos.

Rodrigues relata, porém, que muitos não respeitam as regras de publicidade para a área, inclusive publicam fotos de "antes e depois", o que não é permitido.

"Acontece bastante. Tem muitos médicos que não respeitam essa regra, mas a gente tem um padrão muito claro: nós não fazemos. O médico pode pedir, mas não fazemos, porque é nossa marca, é nossa imagem da Agência do Médico que está em jogo."

"Se você quiser fazer, você pode fazer no seu próprio celular. A gente deixa claro que o Conselho não permite, mas a conta, no final das contas, é do médico, então ele tem todo o direito de publicar o que ele quer e também está passível de punição, mas aí é responsabilidade dele."

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Pouca fiscalização

Bastante popular nos perfis de algumas categorias médicas, como dermatologistas, e de nutricionistas, posts comparando os resultados de um processo de emagrecimento ou de um tratamento estético, conhecidos como "antes e depois", são vetados pelos Conselho Federal de Medicina (CFM) e pelo Conselho Federal de Nutrição (CFN).

Porém, esses conteúdos continuam sendo publicados nas redes e, aparentemente, sem punição – mesmo com a previsão no Código de Ética.

Proibido desde 2015

  • A resolução 1.974/2011 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que veta a exposição do paciente como forma de “divulgar técnica, método ou resultado de tratamento”, mesmo quando houver autorização expressa dele é de 2011, mas não era clara em relação às punições para médicos que descumprirem o veto.
  • Em 2015, uma nova resolução do CFM proibiu a publicação por médicos e estabelecimentos de assistência médica de imagens do “antes e depois” de procedimentos em mídias sociais, como sites, blogs, Facebook, Twitter, Instagram, Youtube e WhatsApp, entre outros. A publicação de modo “reiterado e/ou sistemático” dessas imagens nas redes deverá ser investigada.
  • No caso dos nutricionistas, também é vedado esse tipo de divulgação, e o descumprimento pode resultar em advertência, multa, suspensão ou até proibição do exercício profissional.
  • A proibição para os nutricionistas está prevista no artigo 58 do Código de Ética da categoria que entende que essas imagens podem “não apresentar o mesmo resultado para todos e oferecer risco à saúde”, segundo o documento.

Em São Paulo, foram emitidas 1.374 punições a médicos ligados ao Cremesp (Conselho Regional de São Paulo) entre fevereiro de 2019 a janeiro de 2023 por má conduta na prática da profissão – nenhuma delas relacionada à publicação de imagens de "antes e depois" ou ao uso das redes.

No Rio Grande do Sul, foram recebidas 94 denúncias sobre publicidade médica – termo mais amplo, que abrange inclusive a publicação do antes e depois. Porém, o Cremers (Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul) não soube informar quantas dessas denúncias viraram, de fato, penalidade.

O Conselho observou ainda que alta quantidade de denúncias relacionadas à publicidade médica fez o órgão criar a Codame (Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos), um setor específico para supervisionar a divulgação (individual ou coletiva) de assuntos específicos pelos veículos de comunicação e/ou redes sociais.

Nutricionistas

A reportagem também procurou duas unidades do CRN (Conselho Regional de Nutrição): o CRN-2, que abrange o Rio Grande do Sul, e o CRN-3, que compreende São Paulo e Mato Grosso do Sul. A primeira não retornou.

Já o CRN-3 informou que 15 nutricionistas foram julgados por infrações éticas e que somente um recebeu a penalidade de repreensão, por descumprimento do artigo 58 do Código de Ética e de Conduta do Nutricionista. Os dados são de 2018 até o momento.

A coordenadora do Setor de Ética do CRN-3, Selma de Britto, salientou por nota que a análise desse número pode fazer pensar que essa infração é "irrelevante, pois somente um profissional foi julgado e penalizado".

Porém, ela frisa que por conta da pandemia houve a suspensão dos julgamentos de março de 2020 até agosto de 2021. "Atualmente estão em trâmites PED (Processo Ético Disciplinar) que apresentam essa infração".

Segundo De Britto, um estudo comparativo das infrações éticas cometidas entre 2019 e 2021 constatou "tendência de elevação da frequência de infração ético disciplinar, associada ao uso inadequado das redes sociais, que inclui o artigo 58, pelos nutricionistas recém habilitados que já iniciaram o exercício profissional sob a orientação do novo CECN".

Das denúncias recebidas em 2022, ainda segundo a profissional, foram constatados 162 indícios de infração pelo uso inadequado de redes, que inclui o desrespeito ao artigo 58.

Nestes casos, a Comissão de Ética "deliberou pela ação de orientação ético disciplinar por notificação ou convocação de reunião e aproximadamente 85% dos profissionais adequaram a conduta, sem a necessidade de aplicação de penalidade", conforme nota do Conselho.

Na prática, a nutricionista Ana Ceregatti entende que o 'antes e depois' pode dar visibilidade para quem atua nessas áreas, apesar de ela mesma postar pouco no Instagram – a última publicação foi em outubro do ano passado – e ser mais adepta a fazer vídeos no Youtube sobre alimentação vegetariana e materno-infantil.

"Hoje a pessoa precisa se posicionar, mostrar quem ela é para poder ganhar clientes e sobreviver. Esses ‘antes e depois’ eu acho que é uma forma de mostrar: ‘Olha como sou competente. A pessoa estava pesando 80 kg e depois da minha orientação passou a pesar 50kg’. (O paciente pensa) 'Nossa, vou naquela nutricionista, que fez perder 30 kg'."

Exposição

Por acontecer com frequência, publicações desse tipo feitas por médicos, nutricionistas e pacientes acabam banalizando a exposição nas redes, e a pouca fiscalização só piora o quadro, observa a pesquisadora Viviane Ferreira de Vasconcélos.

"A baixa fiscalização associada a recursos disponíveis de efemeridade e restrição de visualização por grupos podem levar a uma falsa sensação de segurança ou mesmo de aceitabilidade em relação ao que é postado."

"Mesmo diante da existência de leis e manuais de condutas que abordam o posicionamento digital e o e-profissionalismo, os médicos ainda incorrem em erros em seus perfis e na interação online com pacientes."

Vasconcélos analisou o uso do Instagram por dermatologistas, com foco na exposição de pacientes nas redes, e evidenciou a necessidade de uma maior reflexão sobre esse tema.

  • Na pesquisa, Vasconcélos observou 471 perfis públicos, sem restrição de acesso, entre abril e maio de 2021, e considerou os posts no feed e nos stories em que foram divulgados nome, partes do corpo ou rosto do paciente, resultados de exames ou ainda dados de sua história clínica, diagnóstico ou tratamento divulgados por meio de foto ou vídeo.
  • No feed, 196 indivíduos foram expostos, enquanto nos stories foram 669 pessoas expostas. Em apenas um perfil, 31 indivíduos foram expostos.
  • A exposição ocorreu, no caso do feed, em 86,4% dos casos, ao se mostrar parte do corpo ou do rosto do paciente. No caso dos stories, o índice caiu para 38,7%.

Na ânsia por gerar conteúdo continuamente e para se manterem visíveis, analisa a pesquisadora, muitos profissionais "repostam imagens dos próprios pacientes que fazem referência ao atendimento, colocando em risco a privacidade e confidencialidade das informações, a imagem de seus pacientes e até mesmo a relação médico e paciente".

Ainda assim, Vasconcélos reconhece que o uso das redes sociais pode trazer benefícios, criando uma maior interação entre médico e paciente antes mesmo da consulta. "No entanto, ela deve ser conduzida com o mesmo cuidado e respeito que as relações presenciais impõem às relações em saúde”, ressalta.

Reportagem Hygino Vasconcellos
Colaboração Michel Gomes
Arte Rodolfo Almeida
Edição Samira Menezes e Sérgio Spagnuolo

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