Para evangélicos, WhatsApp e Telegram são extensão da igreja

Simbiose entre novas mídias e evangélicos é histórica; grupo usa mais as redes sociais do que a média brasileira
Para evangélicos, WhatsApp e Telegram são extensão da igreja
Arte: Rodolfo Almeida
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"Santa Ceia Online | Instruções". É esse o título de uma sequência de imagens veiculadas no canal de Telegram da Assembléia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC) para seus mais de 10 mil inscritos. A publicação ilustra como os grupos no WhatsApp e Telegram são usados pelos evangélicos como uma extensão da vida comunitária física das igrejas e de suas práticas religiosas.

Silas Malafaia, uma das lideranças mais conhecidas da ADVEC, costuma compartilhar, semanalmente, pílulas de conteúdo audiovisual nesse mesmo canal. Os vídeos duram por volta de um minuto, o que destoa do Malafaia dos anos 1990, que angariou fama com pregações de horas, gravadas em fitas cassetes.


É importante porque...

Hoje cerca de 31% dos brasileiros são evangélicos;

Analisar os impactos das mídias sociais na vida religiosa pode auxiliar na compreensão dos processos eleitorais no Brasil;

Há historicamente uma relação de adaptação e proximidade dos evangélicos com as diferentes mídias que emergem na sociedade moderna e pós-moderna


Print da pasta de vídeos enviados por Malafaia no canal da ADVEC no Telegram

Para o comunicólogo e doutorando em estudos da mídia na UFRN, Odlinari Ramon Nascimento, personalidades religiosas como Malafaia incorporaram as novas lógicas de mídia.

"Isso impacta na forma da mensagem, no seu tempo e produção. A comunicação muda, e o ambiente também vai moldando essa comunicação", explica.

Ele aponta o Telegram como plataforma buscada por lideranças e instituições devido a sua capacidade de permitir números maiores de participantes em um mesmo canal, diferente do WhatsApp.

Outra denominação com presença no Telegram é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), uma das maiores em número de membros, atrás apenas da Assembléia de Deus (AD) e da Congregação Cristã no Brasil (CCB).

O canal tem mais de 28 mil inscritos e compartilha mensagens semanais, mas a aparição do Bispo Edir Macedo, líder religioso da IURD, não é tão recorrente.

Mesmo que entidades procurem o Telegram, o WhatsApp ainda é a plataforma mais usada pelos evangélicos. Na pesquisa "As religiões e as mídias sociais: o quadro geral brasileiro e o caso evangélico", Waldney de Souza Costa aponta que os evangélicos usam as redes sociais mais do que os católicos - autodeclarados 50% da população brasileira - e também mais do que a média geral.

O doutor, que é professor e chefe do Departamento de Ciências da Religião da UERN, utilizou os dados do Latinobarómetro, instituição chilena que realiza pesquisas de opinião na América Latina.

Essas interações digitais em grupos de aplicativos de conversa representam, diz Odlinari, uma extensão da vida comunitária dos templos.

"No offline, a denominação se divide por grupos e a igreja não deixa de ser uma plataforma. Quando surgem as digitais, precisamente o WhatsApp, ele permite essa vinculação, e difere de outras mídias como Instagram e Twitter, nas quais você fala para vários grupos", argumenta.

Isso permite, também, uma expansão da prática religiosa para além dos limites do culto e templo físicos, continua o comunicólogo.

"No início dos anos 2000, eu via meus amigos de igreja nos dias de culto. Agora, o grupo da igreja está 24h no grupo do WhatsApp e sete dias por semana, ou seja, a qualquer hora que você quiser se comunicar",
- Odlinari Ramon Nascimento, comunicólogo e doutorando em estudos da mídia na URFN e membro da Assembléia de Deus por duas décadas

A Igreja Adventista do Sétimo Dia disse em nota ao Núcleo que "usa muito o WhatsApp porque é o meio mais fácil e prático para nos relacionar e manter conexão como igreja, mesmo fora dos momentos de culto".

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EVANGELICALISMO E REDES SOCIAIS

Waldney explica que a relação do evangelicalismo com as mídias não é recente. Ele cita a reforma protestante, na qual houve o movimento de tradução e distribuição da bíblia.

"Historicamente, as mídias sempre foram necessárias e essenciais para [o evangélico] se definir enquanto crente e acessar os recursos da sua religião. O repertório religioso não é entregue apenas numa igreja e instituição. Ele passa por uma mídia. Então, os crentes estão pré dispostos a experimentar as novas", diz o professor.

Embora a simbiose entre mídia e evangélicos seja histórica, há uma diferença que incide nas redes sociais: elas não necessariamente passam pela gerência do Estado, como é o caso das concessões de rádio e televisão, e ainda não têm uma regulamentação bem definida, completa Waldney.

BENÇA, ROBOZINHA

“Olá, para mim será um prazer ser sua instrutora bíblica!”
E assim que Esperança, robô virtual da Igreja Adventista do Sétimo Dia, recebe quem a procura. Promovida em parceria com a emissora de TV Rede Novo Tempo de Comunicação, o objetivo é possibilitar o estudo da bíblia via WhatsApp.

Ao abrir o link da conversa no aplicativo, o usuário pode escolher um tema para estudar virtualmente com a ferramenta. São 14 assuntos, que variam entre “Felizes na Intimidade. Um curso sobre sexualidade no matrimônio”, “Ensinos de Jesus: Uma introdução sobre a Bíblia” e “Evidências: Um curso sobre as evidências bíblicas”. Ao final do estudo, que consiste em responder algumas perguntas no próprio WhatsApp, é possível receber um certificado de conclusão.

SOBRE O QUE É O PAPO?

O relatório Caminhos da Desinformação: Evangélicos, fake news e Whatsapp no Brasil, publicado em agosto de 2021, realizou uma pesquisa com batistas e assembleianos, nas cidades de Recife e Rio de Janeiro, e apresenta métricas de conteúdo, periodicidade e razões de uso do Whatsapp dos entrevistados.

No documento, os 'memes', fotos e vídeos pessoais aparecem, respectivamente, como os mais veiculados.

Na contramão, os links são um dos tipos conteúdo menos compartilhados, o que pode ser explicado pelo uso de pacotes de dados que permitem apenas o uso das mídias sociais.

Ainda, estar informado sobre questões da sua comunidade; ter uma formação e prática religiosa; e estar informado sobre questões da atualidade aparecem como os três principais motivos para os evangélicos participarem dos grupos religiosos no WhatsApp.

Os encaminhamentos também são prática frequente. Menos de 38% dos entrevistados disseram que raramente ou nunca encaminham algum conteúdo recebido nos grupos. Odlinari explica que, no geral, os temas dos públicos evangélicos permeiam a moralidade e, hoje, têm um formato pronto para ser destinado.

"São conteúdos pensados para serem compartilhados. Por isso são menores e a estratégia de chamar a atenção é muito presente".

No Facebook, existem diversas comunidades para compartilhar links de grupos de WhatsApp. Os assuntos ilustram uma vivência das práticas religiosas dos templos, por isso falam de orações, leituras bíblicas, músicas, encontros, eventos e temas interseccionais sobre a fé evangélica.

Exemplos são a Igreja Adventista do Sétimo Dia, que além robôs virtuais no WhatsApp para sanar dúvidas ou oferecer conselhos bíblicos, tem uma comunidade no Metaverso. Cultos realizados via aplicativos por diversas entidades também aconteceram, muitos motivados pelas restrições da pandemia, mas que hoje permanecem.

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NAMORO UNGIDO

Uma temática que aparece com frequência tanto no Telegram quanto no Zap é a de namoro e relacionamento.

Para Waldney, isso pode ser explicado pela lógica religiosa do "jugo desigual" – que é a união afetiva entre pessoas de religiões ou congregações/igrejas diferentes. Segundo ele, essa visão vem sendo reinterpretada ao longo das décadas no meio evangélico, o que se reflete no ambiente digital.

"À medida que vão surgindo essas mídias e o evangélico indeterminado, esse jugo desigual é reinterpretado, e a tecnologia é uma forma de montar isso melhor".

DESCENTRALIZAÇÃO

O número de evangélicos cresceu no Brasil nas últimas décadas. Hoje, eles são autodeclarados 31% da população.

Nessa esteira, cresceu também o número de evangélicos 'não institucionalizados', ou seja, aqueles que se declaram só evangélicos, sem sinalizar um vínculo com alguma das instituições, como Assembléia de Deus, Universal e outras.

Para Waldney, o dado sinaliza que o ser religioso está mais desapegado das agências de controle, o que se traduz também no uso das mídias sociais.

O professor diz que a prática religiosa é inerente ao sujeito religioso, ou seja, quem é evangélico se anuncia nos espaços públicos como evangélico. Dessa forma, passa a ser ainda mais importante ter acesso aos conteúdos que estão no ambiente digital.

"É Importante saber o novo louvor e o pregador, a nova interpretação da bíblia, quais livros estão sendo vendidos", diz ele, que também estuda a relação da música com os evangélicos.

Já Odlinari argumenta que o crescente número de evangélicos sem vínculos institucionais não configura um rompimento, mas sim uma reinterpretação. "Ele muda a plataforma, deixam a religião tradicional e vivem outras vivências religiosas", diz o comunicólogo.

Ele defende que a interação dos evangélicos com as mídias sociais vai além do uso, mas transformou-se numa forma de habitação. Não é apenas uma ferramenta, "mas eles incorporam lógicas de mídia para comunicar, não só anunciar. Existe uma igreja na minha cidade que hoje produz um podcast, mas nos anos 1990 era contra o uso da televisão", relembra.

POLÍTICA E FAKE NEWS

Ainda no relatório Caminhos da Desinformação:

  • Quase metade (49%) dos respondentes afirmaram já ter recebido alguma informação falsa em alguns de seus grupos que reúnem pessoas de sua denominação;
  • 37% disseram que não receberam;
  • e 14% disseram não saber;
  • Não foi identificado um perfil socioeconômico específico de pessoas que afirmam não compartilhar fake news.

Em junho, algumas entidades religiosas assinaram um acordo, proposto pelo TSE, que visa promover a tolerância no pleito e o combate às fake news.

A adesão de evangélicos, contudo, foi baixa. Em nota, o presidente da Unigrejas (União Nacional das Igrejas e Pastores Evangélicos), Bispo Eduardo Bravo, disse que não assinou o acordo porque “na busca de temperança e na representação de mais de 50 mil pastores e igrejas, resolvemos ficar como observadores do evento, posto que há temas sensíveis em pauta, como o chamado combate à desinformação".

A BANCADA EVANGÉLICA

A Frente Parlamentar Evangélica (FPE) no Congresso Nacional soma 202 deputados e nove senadores. Muitos não são necessariamente evangélicos e professam outras religiões. Já a bancada evangélica concentra os membros mais ativos da FPE. Seu atual líder é o deputado Sóstenes Cavalcante (PL), membro da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e próximo de Silas Malafaia.

Foi na década de 1980 que lideranças evangélicas começaram a manifestar interesse por cadeiras na Câmara dos Deputados e no Senado, o que se estendeu ao período da Constituinte, no qual houve uma aglutinação dessas lideranças. Desde então, as concessões de rádio e televisão são uma das pautas desses grupos, que buscavam tanto a defesa de suas denominações como de seus conglomerados de mídia.

Embora diversa, a bancada evangélica costuma se posicionar sobre pautas de costumes e moralidade. Muitos membros, como Sóstenes, são apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Contudo, as cadeiras da FPE não condizem com o perfil da população evangélica brasileira, que é majoritariamente composta por mulheres, pessoas negras e pobres.

Algumas das entidades que não assinaram o acordo estão alinhadas aos movimentos da direita e extrema-direita brasileiras. Nesse espectro político, as notícias falsas costumam ter mais engajamento.

Discursos falaciosos ou mentirosos também são usados por Jair Bolsonaro, que só em 2021 disse cerca de sete informações falsas ou distorcidas, conforme levantamento feito pela Agência Aos Fatos.

O presidente teve grande apoio de lideranças e entidades evangélicas na eleição de 2018.

Marcos Vinicius Reis, coordenador do mestrado em história na UNIFAP e líder do Centro de Estudos de Religião, Religiosidades e Políticas Públicas (CEPRES), defende que as fake news não existem sem um pano de fundo.

No meio religioso, "é uma leitura enviesada da realidade em nome do interesse em algo, em função do fundamentalismo, conservadorismos e em nome de uma visão política para o Brasil".

O professor explica que o nacionalismo e patriotismo surgem como um dos principais argumentos elencados nas notícias falsas.

Ele argumenta que desde a origem do protestantismo, houve uma aproximação da vertente com questões de mercado, trabalho, valorização e liberdade individual.

"No Brasil, isso acaba ganhando nova nuance. Essas igrejas, para crescerem do ponto de vista político, passam a criar alianças com grupos mais à direita. Esse discurso conservador de retorno à tradição está vinculado à conjuntura política, e com os avanços dos processos de tecnologia isso se atualiza", explica ele, que acredita ser impossível dissociar, hoje, a religião da análise política do país.

Como os grupos evangélicos nas redes sociais são uma extensão e expansão da igreja, notícias falsas podem circular também nos púlpitos. O comunicólogo avalia que "já existia muita desinformação circulando nas igrejas evangélicas, mas na plataforma digital, isso se acelera de uma forma gigantesca, e é muitas vezes potencializada por líderes religiosos."

Para Waldey, que identificou uma ascensão do uso do WhatsApp por evangélicos no período eleitoral de 2018, esse núcleo religioso nunca parou de usar o aplicativo. O pesquisador cita o exemplo da pandemia de Covid, na qual muitos religiosos escolheram não vacinar suas crianças.

Em sua análise, existe uma afinidade de forma e conteúdo dos evangélicos com os movimentos de direita brasileiros. Ele acredita que, assim como há quatro anos, o aplicativo de mensagens vai ser um importante artifício eleitoral e "os evangélicos vão ser o último bastião de Bolsonaro", finaliza.

Dos 25 dias com programações oficiais divulgadas pelo Planalto no último mês, dez foram dedicados a atos religiosos e/ou encontros com pastores, ou seja, 40% da agenda do presidente.

COMO FIZEMOS ISSO

A repórter integrou por algumas semanas grupos de WhatsApp e Telegram das maiores igrejas evangélicas do Brasil (AD, IURD, Presbiteriana e Batista) e observou as interações e tipos de conteúdo compartilhados.

A reportagem de Núcleo entrou em contato, via e-mail, com todas as igrejas citadas. Apenas a Adventista do Sétimo dia deu retorno; ADVEC, AD Madureira e IURD não responderam até a data desta publicação.

Reportagem Bárbara Poerner
Edição Alexandre Orrico

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