Processo de grupo armamentista contra YouTube expõe batalha da direita contra moderação nas redes

Em ação judicial, associação armamentista compara moderação do Youtube com censura na ditadura, mas processa jornalistas por terem publicado reportagens
Processo de grupo armamentista contra YouTube expõe batalha da direita contra moderação nas redes
Arte de Rodolfo Almeida/Núcleo Jornalismo
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"Qualquer pessoa que tiver um canal relacionado a arma de fogo que tiver sofrido um bloqueio, banimento ou uma desativação poderá ingressar no processo se houver condenação por dano moral", disse o advogado Emerson Grigollette durante uma live no Youtube em 22.nov.2021.

A convocação fazia referência a um processo de ago.2021 movido pela Associação Nacional Movimento Proarmas, um dos mais vocais grupos armamentistas do Brasil, contra o Google Brasil, na qual solicitava uma série de reparações por conta de punições aplicadas pelo YouTube a conteúdos envolvendo armas de fogo.

A live contava também com a presença do advogado Marcos Sborowski Pollon, presidente da Proarmas, influenciador armamentista e figura próxima à família Bolsonaro, além de figura frequente no Congresso Nacional.

O vídeo – O que fizemos em relação à sabotagem do YT?não é apenas uma longa explicação de Grigollette sobre o caso, mas sim um exemplo claro de como a direita armamentista está se posicionando judicialmente contra a moderação das plataformas.


É importante porque...

Mostra estratégia da direita armamentista para combater moderação de conteúdo de redes na Justiça

Exemplifica como noção de liberdade de expressão vem sendo distorcida por grupos políticos para servir a interesses próprios

Expõe mais uma faceta da judicialização das redes sociais


Valendo-se de exageros interpretativos e argumentos amplamente contestados sobre a legislação brasileira e marcos internacionais de moderação de conteúdo, o Proarmas apela para a liberdade de expressão como seu principal ponto, um argumento recorrentemente usado pela direita nesses casos – embora a própria associação esteja processando diversos veículos de imprensa por conta de seus conteúdos.

"Se tem 10 mil pessoas com penalidade aplicada e acionam [a Justiça], eles [o Google] quebram"
- Emerson Grigollette, advogado do Proarmas, em live de nov.2021

Um dos pontos mais notáveis do processo acusa o YouTube de censura equivalente ou pior àquela aplicada pela ditadura militar – período de 20 anos de repressão às liberdades no Brasil que deixou dezenas de milhares de mortos políticos.

A Proarmas não esconde de ninguém que estratégia deve ir além da plataforma de vídeos. "Nós precisamos botar o Instagram em uma dessa", afirmou Pollon na live, referindo-se às ações de moderação na plataforma da Meta.

Grigolette disse que já estava montando uma ação semelhante, mas que a briga contra Instagram e Facebook é "sempre mais difícil".


Liberdade de contradição

A vibe de Davi vs Golias do processo é atrapalhada por uma clara contradição no argumento central do Proarmas: a organização acusa o YouTube de censura e prega liberdade de expressão, mas está por trás de uma recente escalada judicial contra jornalistas e veículos de imprensa que cobrem o tema do armamentismo e legislação de armas no Brasil.

Um levantamento do Instituto Sou da Paz mostra que pelo menos 14 veículos de imprensa ou jornalistas foram acionados judicialmente pela associacão no Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul entre o fim de 2021 e o começo de 2022 envolvendo direito de imagem, no que pode ser considerado assédio judicial.

O Proarmas tem sede em Campo Grande.

Véiculos processados pelo Proarmas

Segundo o Instituto Sou da Paz, os veículos estão sendo processados pela associação:

  • Folha de S.Paulo
  • Globo
  • UOL
  • BBC
  • El País Brasil (que parou de publicar em dez.2014)
  • Ponte Jornalismo
  • Diário de Pernambuco
  • Rádio Difusora Pantanal
  • Editora Abril
  • Empresa Jornalística Caldas Júnior
  • Portal Terra
  • Jornal Folha de Dourados
  • Correio Brasiliense
  • Tá na Roda Notícias 

Há também processos contra dois jornalistas (pessoa física) e contra o político Guilherme Boulos. 

A estratégia de conclamar liberdade de expressão de um lado e ir atrás de jornalistas de outro é um velho artifício utilizado pela direita, mas o caso do Proarmas merece destaque porque judicializa essas duas pontas.

Além disso, a judicialização da moderação de conteúdo das redes sociais vai em linha com a vontade do governo Bolsonaro de impedir sanções a conteúdos de direita antes das eleições em outubro.

Em set.2021, por exemplo, uma Medida Provisória do presidente Jair Bolsonaro tentou reduzir a autonomia das redes de realizarem auto-moderação, estipulando um rol de "justas causas" que limitava a atuação das empresas. Essa tentativa não foi pra frente, mas deixou clara a vontade do governo de regulamentar a moderação de conteúdo.

Medida Bolsonaro sobre moderação de redes pegou mal com todo mundo
Medida provisória tem interpretações dúbias e causa confusão até entre especialistas

Busca nacional

A Proarmas, presidida por Pollon, ingressou com a ação em busca de um impacto nacional que se estenderia a "todos canais armamentistas do Brasil", conforme anunciado em vídeo no canal do próprio advogado, que possui 130 mil assinantes.

Na petição inicial, a associação pedia que o Youtube pagasse R$10 mil por cada penalidade (chamada de strike pela plataforma) aplicada e R$100 milcaso o canal tivesse sido suspenso.

Os principais argumentos do Proarmas, segundo os autos do processo, são de que a moderação do Youtube a conteúdos específicos sobre armas de fogo configura censura e controle da informação – uma violação à liberdade de expressão.

"Nem mesmo no período mais duro da ditadura militar brasileira viu-se tamanho controle da informação", escreveu o Proarmas em sua petição inicial.

A organização argumenta ainda que, como a legislação brasileira não proíbe o direito de acesso ao porte e posse de arma de fogo, o Youtube não poderia determinar e rotular que conteúdos armamentistas sejam considerados nocivos.

Os pedidos do Proarmas no processo contra o Google:

* que sejam declaradas nulas três políticas do Google com relação a armas de fogo
* condenação da Google ao pagamento de indenização por supostos danos morais, materiais e lucros cessantes
* que o Youtube exiba um "comunicado permanente, a ser disponibilizado e disparado a todos os usuários brasileiros, indicando a existência da presente ação, e convocando eventuais interessados a integrarem a presente".

Tiro torto

Segundo advogados consultados pelo Núcleo, o processo, ainda em andamento, expõe um desconhecimento sobre os direitos e deveres que convêm às plataformas de redes sociais e aos usuários, e demonstra como a noção de liberdade de expressão vem sendo distorcida por grupos da extrema-direita.

"É bem visível na petição inicial que eles distorcem o conceito de liberdade de expressão ao bel-prazer deles, porque quando é interessante eles mobilizam para se defender", explicou ao Núcleo a advogada Alice Lana, coordenadora do InternetLab.

"Como os advogados do Youtube alegam, a plataforma é um ente privado que tem liberdade de escolher o que estará ali ou não. Eles não são o Estado, não estão adstritos apenas pelo que é legal ou ilegal", disse Lana.

Na contestação do Google, a ação foi ajuizada "com base na equivocada premissa... de que a Google estaria 'literalmente proibindo a veiculação de qualquer conteúdo' no YouTube relacionado a armas de fogo, peças de armas de fogo, explosivos e outros produtos semelhantes".

Em outubro de 2018, o Youtube atualizou sua política com relação a armas de fogo, expandindo as restrições para incluir vídeos que direcionassem para venda de armas ou ensinassem como montar acessórios.

Foi a segunda mudança dentro de um ano: a anterior havia ocorrido pouco depois de um tiroteio em Las Vegas, em outubro de 2017, para proibir vídeos que ensinassem técnicas caseiras para converter armas em automáticas.

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Made in Estados Unidos

Apesar do endurecimento das regras da plataforma, ainda há muito conteúdo ligado a armas no YouTube – principalmente em inglês, mas também em outras línguas.

No caso dos Estados Unidos e do Brasil, o conteúdo armamentista quase sempre converge com conteúdo de cunho político, já que o debate em torno de armas de fogo se tornou também uma pauta política.

Organizações armamentistas brasileiras acabam por reproduzir muito do discurso norte-americano.

Isso inclui defesa do acesso às armas como direito fundamental, algo que nos EUA é assegurado pela Segunda Emenda, mas que não tem previsão constitucional no Brasil.

No caso da ação contra o Google, a noção de liberdade de expressão defendida também se relaciona bastante com o que se vê no contexto dos Estados Unidos, onde a liberdade de expressão tem outro peso.

"Essa noção de liberdade de expressão é um tanto influenciada pela noção de liberdade de expressão estadunidense, que é diferente da noção de liberdade de expressão do Brasil. Nos EUA, a liberdade de expressão tem um peso que não tem no Brasil", acrescentou Lana.

O ponto de virada em muitas políticas de moderação foi a invasão do Capitólio dos EUA em jan.2021, que levou as plataformas a adotarem postura "mais ativa, enérgica e menos passiva", disse ela.

Gatilho

O gatilho que levou mesmo à ação do Proarmas foi uma mudança anunciada pelo Google em julho de 2021 aos procedimentos de violações recorrentes nas Políticas do Google Ads – algo totalmente separado das políticas de moderação de conteúdo do YouTube.

Foi essa alteração, na avaliação do Proarmas, que justificaria os pedidos de indenização por danos morais – de até R$100 mil – já que a monetização de canais armamentistas no YouTube poderia ser prejudicada por decisões discricionárias das plataformas.

O problema é que a atualização nas regras do Google Ads diz respeito aos anunciantes, e não aos proprietários de canais do Youtube. Ou seja, essa atualização não incide nos canais armamentistas, como pressupõe a ação movida pelo Proarmas.

Em sua contestação, a Google também argumenta que "não há dano indenizável porque a remoção de conteúdo e a aplicação de penalidades é precisamente uma resposta legítima a um ilícito contratual que tenha sido cometido pelo usuário". Ou seja, ao aderir ao Youtube, cabe ao usuário cumprir com a sua parte do contrato.

Na live de nov.2021, Grigolette afirma que haveria tido um recuo do YouTube em sua contestação, mas a íntegra do processo mostra que o Google se manteve firme à sua posição.

Déjà vu

A ação contra o Google também parte de uma interpretação equivocada do Marco Civil da Internet, que de alguma forma regula a operação de plataformas de redes sociais no Brasil.

O argumento de que plataformas de redes sociais não podem remover conteúdo sem determinação judicial é incompatível com a legislação brasileira sobre o tema.

O artigo 19 do Marco Civil da Internet diz justamente o contrário: que plataformas "só poderão ser ser responsabilizadas civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros,  se, após ordem judicial específica, não tomarem as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente".

Esse entendimento distorcido não é novidade, lembra Alice Lana, do InternetLab, lembrando da MP de Bolsonaro às vésperas do 7.set.2021.

A medida provisória, que foi devolvida ao Executivo pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, limitava a atuação das plataformas a uma série de condições pré-estabelecidas pelo governo e previa penalização caso a moderação extrapolasse esses critérios.

"A MP continha essa interpretação torta que eles repercutem aqui, como se o Marco Civil da Internet proibisse as plataformas de moderar conteúdo sem ordem judicial, que é uma interpretação escabrosa, não faz sentido nenhum", disse Lana.

É como se o iFood não pudesse tirar uma comida estragada da plataforma porque não tem uma ordem judicial mandando tirar
- Alice Lana, do InternetLab

O processo do Proarmas ainda está em andamento, mas tem poucas chances de prosperar por conter, já na petição inicial, muitos vícios formais, avaliou a advogada.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a União, provocadas na petição inicial do Proarmas a se manifestarem, já recusaram qualquer medida, por entenderem que não têm nada que ver com a ação em questão.  

Como fizemos isso

Tenha acesso aos autos do processo que tramita sem sigilo de justiça na Justiça Federal em São Paulo.

O Núcleo pediu esclarecimentos ao Proarmas por email na sexta-feira, 13.mai.2022. A resposta veio nesta segunda-feira, 16.mai.2022, e solicitava que o editor entrasse em contato via WhatsApp. O contato foi feito às 9h23 do mesmo dia, mas não houve mais resposta.

Por meio de sua assessoria de imprensa, o YouTube disse que não comentará o caso.

Texto Laís Martins
Edição Sérgio Spagnuolo

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