Coworkings virtuais viram alternativa de trabalho remoto na pandemia

Contra solidão e procrastinação, pessoas estão se conectando online até com estranhos para cumprir o expediente de casa
Coworkings virtuais viram alternativa de trabalho remoto na pandemia
Arte: Rodolfo Almeida
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Enquanto muitos sofrem com a estafa do Zoom após mais de um ano de pandemia, há quem tenha encontrado a produtividade do trabalho apenas deixando a câmera do computador ligada em horário comercial. Nasceram assim espécies de coworkings virtuais, um novo método de uso das redes sociais para aumentar a produtividade e se sentir, mesmo que em casa, como num escritório.

Não se trata de um mero BBB das 9h às 18h: essas sessões seguem regras e têm por objetivo melhorar a comunicação entre colegas de trabalho ou ajudar no cumprimento de tarefas -- e em alguns casos ser vigiado por estranhos.

O Núcleo foi atrás de quem tem utilizado essas lives para entender o que motiva sua adoção, e o impacto que ela pode ter no trabalho, na nossa produtividade e até nos escritórios.


É importante porque...
  • Mostra novas formas de trabalho online motivadas pela pandemia
  • Redes sociais, cada vez mais, passam a fazer parte da rotina profissional das pessoas
  • Novos negócios e relacionamentos podem surgir de corworkings virtuais

Plataforma popular entre gamers, a Twitch é uma das casas desses coworkings. A rede social de streaming nasceu hospedando transmissões de pessoas jogando, mas, recentemente, viu surgir lives de afazeres mais prosaicos, como escrever a tese de doutorado.

Uma adepta da prática é Miriam Castro, conhecida online como Mikannn, jornalista e criadora de conteúdo sobre cultura pop. Mikannn também começou usando a Twitch com games, mas durante a pandemia ampliou o uso para sua rotina de trabalho.

"A princípio estava pensando em como integrar mais as lives ao meu cotidiano. Por outro lado, tenho muita dificuldade de foco e descobri que era uma forma de me ajudar a cumprir minhas tarefas", diz.

As lives acontecem mais ou menos uma vez por semana, sem compromisso, e cerca de 150 pessoas acompanham via chat. Alguns vídeos dela chegaram a ter mais de 5 mil visualizações.

Mikannn escolhe horários fora de sua agenda de reuniões e entrevistas e usa o espaço para tarefas que exigem concentração e silêncio, como escrever. A regra é seguir a famosa técnica Pomodoro: 25 minutos de trabalho e outros cinco de descanso. Os ciclos acontecem por tempo indefinido e já se estenderam por até sete horas em uma tarde de sábado.

Em seus cinco minutos de descontração, ela conversa com os seguidores sobre o que vai pedir para o jantar, práticas de produtividade e aproveita para agradecer as inscrições feitas em seu canal. Depois, desliga o microfone e se mantém, por 25 minutos, de olhos baixos em frente à câmera, com uma playlist de lo-fi hip hop ao fundo, e foco nos deveres - missão comprovada ao vivo.

"Eles estão lá", diz sobre os desconhecidos que a acompanham em tempo real. "Não sei se estão trabalhando mesmo ou não, mas na hora da concentração poucos interagem no chat, e tem um bot que diz que é uma live para ficar em silêncio."

Ser observada não é uma questão para Mikannn. Ainda assim, ela opta por desligar a câmera e não expor sua casa quando precisa levantar para ir ao banheiro ou atender o telefone. Também diz que, como forma de não se distrair com a própria imagem, deixa sua tela minimizada.

"Eu desapeguei um pouco disso. Tendo a encarar como coworking mesmo. Vou agir como se estivesse em um café, em um lugar público. Não vou ficar cutucando a unha, mas ajo naturalmente, focada no que eu faço." - Miriam Castro (Mikannn), jornalista


Vídeo embedado direto do canal de Mikann, no qual ela tem 19,5 mil seguidores

Clara Matheus é doutoranda em literatura e apresentadora do podcast mimimidias, dedicado a divulgar produções acadêmicas e científicas. Declaradamente inspirada em Mikannn, ela organiza sessões de trabalho três vezes por semana na Twitch, que usa para escrever sua tese sobre adaptações literárias para as redes sociais.

"Já fazia lives, mas resolvi unir o útil ao agradável e combinei com o público costumeiro de usar esse espaço para o trabalho. Logo de cara me dei conta que rendi o dobro e decidi abrir um canal dedicado só para isso", diz.

Entre os mais de 100 colegas de estudo desconhecidos de Clara, há um engenheiro trabalhando com biomassa, uma demógrafa, programadores aprendendo Python e uma caloura de História. Os encontros são marcados a princípio às segundas, quartas e sextas por ao menos duas horas divididas em rounds de concentração, mas já aconteceu de a transmissão render por até nove ciclos noite adentro.

Em tardes eventuais que Clara não consegue exibir sua produtividade ao vivo, seu público se encontra em outra plataforma, o Discord, a fim de manter a rotina de trabalho compartilhado. Batizado Bonde do Foco, o servidor tem canais temáticos para as diferentes áreas de estudo, como design, ciências biológicas e programação. Há ainda um espaço dedicado ao compartilhamento de conquistas e um bot de monitoramento de tempo.

LIVE CODING

O estatístico e programador Julio Trecenti também transmitiu por um tempo seu trabalho nas redes sociais, programando ao vivo pela Twitch. Com o objetivo de compartilhar conhecimento, e não eficiência, suas lives (algumas delas com mais de 3 horas de duração) se diferenciavam dos exemplos anteriores por não serem silenciosas ou divididas em rounds.

"Queria gerar conteúdo para a comunidade de programadores, mas não tinha tempo para isso. Pensei então se as pessoas não teriam interesse em me ver trabalhando. Peguei minhas tarefas que já precisavam ser feitas, que poderiam ser públicas, e tentei organizar de forma minimamente interessante", diz.

"Acho super legal que as pessoas façam isso. É uma forma de coworking, mas sei que é também bastante esquisito. É sua intimidade sendo acessada." - Julio Trecenti, estatístico e programador

Os programadores Gustavo Freitas e Guilherme Paciulli chegaram a virtualizar o ambiente de trabalho na pandemia ao manter as conferências abertas durante todo o expediente com os colegas. No geral, para preservar a privacidade, câmeras e microfones ficavam desligados, sendo acionados apenas quando preciso.

"Assim que entramos em quarentena, vimos que tinha muito problema de comunicação no dia a dia, porque ela não flui como no escritório, em que você consegue cutucar o colega ao seu lado. As conferências viraram 'nosso tocar no ombro' para chamar a atenção do amigo ou discutir uma solução. Ter o outro a seu alcance facilita a troca de ideias", conta Gustavo.

A prática parou por questões técnicas: as conferências acabavam consumindo muito espaço dos computadores pessoais, dificultando a realização de outras tarefas.

COWORKING DIGITAL PROFISSIONAL

Nos Estados Unidos, a prática de coworking virtual foi além e se profissionalizou: empresas já cobram para promover o encontro online entre estranhos a fim de trabalhar. Interessados podem assinar os serviços, que chegam a custar US$50, e são conectados a outras pessoas cumprindo suas respectivas obrigações no mesmo horário.

Um exemplo é a startup Ultraworking, que criou o que chama de Work Gym, baseada no conceito de social accountability. A ideia, basicamente, é a de que humanos acham pior decepcionar os outros do que se decepcionar. Por exemplo, participar de grupos de corrida pode ser mais efetivo do que confiar apenas na motivação de alguém para correr sozinho.

O público é composto principalmente de advogados, programadores, engenheiros, executivos e alguns professores e candidatos ao doutorado. "Mas também temos pessoas em áreas mais criativas, como escritores e artistas visuais", disse ao Núcleo por email Sebastian Marshall, cofundador e CEO da empresa.

Da mesma forma, para os criadores do Ultraworking, trabalhar virtualmente ao lado de outras pessoas tende a dar um empurrão na produtividade. A empresa disponibiliza um moderador profissional que assegura sessões conforme planejado, além de oferecer feedbacks nos intervalos de dez minutos que acontecem a cada meia hora.

"Um fato legal: uma pessoa terminou sua tese de phD com a gente em apenas três semanas!" - Sebastian Marshall, CEO do Ultraworking

Outros exemplos de iniciativas são o Caveday, o Work Buddy Online e a Focusmate

Em depoimentos, adeptos aos clubes de trabalho discorrem sobre como melhoraram tanto suas performances, como a saúde mental. Na pandemia, as empresas que já existiam anteriormente com foco em freelancers dizem ter tido crescimentos estratosféricos. Só no Ultraworking, são mais de 10 mil horas de trabalho ao vivo por mês.

Este texto, inclusive, foi escrito ao longo de ao menos três sessões de home office compartilhado e mais um pouco de trabalho solitário. É estranho e eficaz ter uma companhia virtual silenciosa em uma aba, a um control+tab de documentos, páginas de jornais e feeds de redes sociais.

COMO FIZEMOS ISSO

O Núcleo buscou nas redes sociais algumas pessoas que compartilham o trabalho ao vivo e pediu que compartilhassem conosco suas experiências. Também buscou as maiores referências dos entrevistados para entender por que adotaram a prática. Para melhor descrever o processo, acompanhamos algumas dessas lives e nos aventuramos em coworkings virtuais entre amigos.

Além disso, enviamos perguntas à Twitch e às empresas citadas. Apenas a Ultraworking respondeu em tempo para o fechamento desta reportagem.

Reportagem Beatriz Montesanti
Edição Juliene Moretti
Edição Sérgio Spagnuolo
Arte Rodolfo Almeida

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